A MALETA 007

A MALETA 007

Por Stella Rebecchi

“Coloque isso lá em cima do armário e não mexa. Entendeu?”

Ordem autoritária e de forma educada, não permitindo perguntas. De onde saiu isso?”, pensou Mária. Não são nem 11 horas da manhã, e ele já voltou do escritório? Curiosa, olhou a maleta que parecia uma daquelas de filme 007. Imagine se estiver cheia de dinheiro! Até que seria bom! Porém, nunca se permitiria imaginar uma coisa dessas. Não faz a cabeça dele. Todo certinho, careta, respeitoso, responsável, mania de honestidade. Um casal aparentemente feliz, agradável de se olhar, sem problemas financeiros, muitos amigos, casa bonita em bairro arborizado e florido. 

Pierre saiu de novo, foi para seu escritório dizendo que voltaria para o jantar. Andava com ritmo, com ar de quem sabe o que faz e não deixa dúvidas. Homem bonito, elegante, cheiroso. Não foi um pedido, foi uma ordem. Danou-se! A curiosidade matou o gato, ou seja lá o que o matou, foi maior. Suspirou, respirou fundo, na certeza de não ser surpreendida, puxou a maleta para perto de si. Olhou, olhou, acariciou… bonito couro, caro, imaginou com a fantasia solta. Coisas passaram por sua cabeça, mas não muitas coisas. Sua experiência de sacanagens era pequena. Foi poupada das malícias, dos maus feitos, a deixaram ingênua durante sua pouca vida. Não tenho coragem de abrir…, estou ficando com dor de barriga.

A filha chamou-a no andar de baixo, estava com fome. Pegou um banquinho e, rapidamente, enfiou a malinha na parte de cima do guarda-roupa, cobrindo-a com um edredom. Desceu quase correndo até a copa. Acudiu a filha faminta dando-lhe almoço, totalmente, distraída. O dia passou rápido com as coisas rotineiras. Mas a maleta não saiu do seu pensamento naquele dia. Nenhuma explicação de Pierre ao anoitecer, o que era comum e também não havia espaço para alguma pergunta. Fingiu que tudo estava normal falando do seu dia. O que fazer com todo aquele sentimento, aquela curiosidade? O sono custou a vir, filmes confusos, sem pé nem cabeça, foram passando na mente de Mária. Olhou várias vezes para Pierre que parecia dormir tranquilo, ronronando que nem gato. Dormiu de cansada de tanto pensar e se conter. Noite agitada, sonhos esquisitos. De manhã, antes mesmo do bom dia, disparou, o que vai fazer com aquela mala lá em cima? -Deixa quieta lá, não ponha a mão. Não é minha, é dinheiro do Juan. Ele vai vir buscá-la assim que puder. Ele teve que viajar. Na volta vem buscar. Desconfiada, se retraiu, não era momento para mais perguntas. Aos poucos, foi ficando em pânico. Não podemos guardar isso aqui, tá maluco?! Deve ser dinheiro roubado! Cada vez mais aflita, começou a falar depressa e alto: – Melhor sumir com esse negócio! Vamos jogar no Tietê, isso, melhor lugar, jogar tudo fora no Tietê. Vamos de noite do outro lado da Marginal. Estamos correndo risco. Ai meu Deus, que embrulhada esse cara pode nos meter! Em sua calma britânica, respondeu que não era roubado, que ele viria logo buscar. Para ela se acalmar, parar de se preocupar. 

Juan, amigo espanhol, íntimo da casa. Estavam sempre juntos. Alugaram casa na Ilha Bela para férias de verão. Pensando bem, nem gostoso foi. Lá, aconteciam coisas estranhas. Faziam experiências com LSD, que medo! Bebiam pra valer, doidos! Pierre não participava, nem criticava, olhava e se calava. 

Por que será que precisa guardar aquilo aqui? Só pode ser dinheiro escondido da mulher Carmencita que parece que andou colocando chifres nele. Ouvi por alto. Minha amiga ela, bonitinha, meio amorfa, branquela. Nada demais. Seria capaz?! 

Pierre não mudou em nada seu jeito de ser, tranquilamente frio, parecendo um adulto amadurecido em seus vinte e nove anos. Emoções congeladas desde sempre. Nunca deixava se saber o que estava pensando. Difícil conviver com uma pessoa que não deixava se ver por inteiro, escondia sentimentos, bons e maus. Chorar, nem pensar! Começou a refletir sobre isso; o que viu nele que a levou a uma paixão instantânea? Nunca o viu, profundamente, emocionado, nenhuma lágrima, nem quando dois amigos bem chegados morreram. Piorou muito nessa ocasião. Tinha certeza de que usava uma capa impermeável cobrindo as emoções, não deixando molhar e escorrer nenhum sentimento. Pena! Deu o assunto por encerrado e “não se fala mais nisso”. Ele deu mesmo por encerrado, ela, não. Não era uma pulga atrás da orelha, era um pulgueiro sem resposta. Naquela tarde, não segurou a educação, a ética, a obediência. Na certeza de não ser importunada, surpreendida, trancou a porta, subiu decidida no banquinho, afastou o edredom e, em cima da cama, abriu, facilmente, o fecho da bendita. Arregalou os olhos! Ficou sem respiração! O filme começara. Todas arrumadas, as notas de 100 dólares cheirando a novas não deixavam nenhum espaço na seda do forro da malinha. Demorou olhando e se perguntando quantos dólares haveria ali. E como Juan juntou aquilo tudo? Por que guardar com Pierre? Tantas perguntas sem resposta. O telefone tocou a assustando, parecia estar cometendo algo muito errado. Conseguiu dizer um alô esganiçado. Engano. Engano? E se fosse Carmencita desconfiada de que estaríamos escondendo seu dinheiro? Que éramos cúmplices do marido? Fechou correndo a mala, e a devolveu para a segurança do edredom macio. 

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Dias passaram, semanas, alguns meses, e o assunto foi, fingidamente, esquecido. Algumas fofocas de Juan e de Carmencita podiam ser ouvidas pelas bocas de “Matildes”. Parece ter sido um barulho danado. Juan foi para a Espanha, separou da mulher… Ele encontrou-a com outro em seu próprio apartamento…, um amigo. Os dois nus, em plena atividade sexual em sua cama! Em sua cama e de manhã! 

Mária nunca mais viu Carmencita. Sumiu na garoa de São Paulo. O marido, boca de siri, não quis contar quem foi, nem como foi esse enorme babado! Tinha certeza de que ele sabia. Boca de túmulo esse Pierre! Fiel ao amigo? 

Ela continuou sua vida, seu trabalho, seu dever de mãe e esposa invejável, dona de casa exemplar recebendo socialmente como ninguém. Parecia que sua vida era feita de amor, requinte e beleza. Porém, começou a achar que sua casa estava feia, precisando de alguma decoração nova; carpetes na sala, cortinas, estofados do sofá e poltronas, tudo muito velho. Certamente, uma decoração nova para o quarto da filha que estava crescendo. Afinal, recebia amigos e também desconhecidos de prováveis futuros negócios. Nunca sobrava dinheiro para essas coisas! 

Apertou o play e pôs o filme para andar. Subiu no banquinho, agora, decidida. Foi pegando, espertamente, uma nota de cada montinho. Sem a menor culpa. Afinal, faz tanto tempo… Juan sumiu, assim como Carmencita. Vai acabar dando traça nesses dólares. Tinha que dar um jeito de trocar aquelas notas. Não tinha ideia como. Perguntou a um amigo que, certamente, saberia como fazer e não perguntaria nada. Sabia que ele saberia! Não foi difícil. Da primeira vez que foi ao banco, o coração estava acelerado, e as mãos, suando frio. Estava assustada. Mesmo assim, foi em frente. Nenhum problema. 

O que a assustou mesmo foi tanta facilidade. Fez orçamento primeiro do carpete da sala. Sala grande, nem brigou pelo preço. Escolheu na maior alegria os tecidos dos estofados e cortinas de qualidade numa loja de bom gosto. No banco, os dólares foram, facilmente, trocados sem nenhuma pergunta. De pouco em pouco, devagar. Pierre nunca questionou sobre como arranjou dinheiro para tais reformas! Tudo meio estranho. Ela o olhava torto, disfarçadamente, de quando em quando, para descobrir algum sinal em seu olhar. Nada. 

A sala ficou linda em tons de verde claro e bege. Com seu bom gosto, a encheu de vasos grandes de plantas e alguns quadros novos dando uma sensação de charme e aconchego. O Sol que entrava pelas duas grandes janelas da frente, na parte da tarde, deixava a sala mais bonita, alegre, solar, com vontade de ficar. Tudo pago, e sobravam dólares! Muitos dólares! Altas emoções! O filme estava parado para intervalo. 

No meio de uma manhã de início de primavera, quando a neblina e a garoa foram embora, quando o edredom da maleta foi trocado por um lençol, a campainha tocou no portão sempre aberto. Gritou da janela de cima, para dois homens de terno escuro, perguntando o que queriam. 

—Polícia Federal! (Quem ?!) Queremos falar com o senhor Pierre e com a esposa dele. É importante. —Pierre viajou. Volta depois de amanhã. Podem voltar em outro dia? —Não, se ele não está, temos que conversar com a esposa dele agora. Ela está? 

Ficou meio desconfiada de que alguma coisa estivesse errada. Será que tenho cara de quê, para perguntarem se a esposa está. 

—Sou eu, disse meio sem jeito. Mandou-os entrar e ofereceu café. 

—Não, obrigado. Faremos algumas perguntas à senhora já que seu marido não está. Conhece Juan Santiago Diaz? —Sim, é nosso amigo. Sabe onde ele está ou a esposa dele? — Não faço a menor ideia, aconteceu alguma coisa? —Podemos dizer que sim, não vou florear, um estelionatário, vendeu alguns papéis, títulos para muita gente e fugiu com o dinheiro! Chama-se, vulgarmente, de golpe na praça, a senhora deve saber já que seu marido é sócio dele. Mária emudeceu, empalideceu e, depois de um tempinho, respondeu em tom baixo; —Ele não é sócio do meu marido. Meu marido tem loja de material de construção, Juan roubou dinheiro de alguém? —Logo o acharemos. A Interpol está atrás dele. Não deve estar longe. O golpe não foi pequeno. Seu marido deve nos dar pistas seguras. Melhor que ele volte logo, senhora. Estamos indo. Aqui está meu telefone. 

—Ele está na Espanha, disse com voz baixinha, quase sumida. 

A cabeça dela ficou atordoada, sem conseguir raciocinar. Golpe na praça, sei muito bem o que é isso. Interpol…, se Pierre tiver alguma coisa a ver com isso, está perdido. Estamos. Sou cúmplice. Peguei os dólares, gastei, meu Deus! Estou perdida, vou pra cadeia, todo mundo vai saber. E minha filha, minha mãe, minha família? Vão matar Pierre. Socorro! Quem é o Pierre? 

Andava de lá pra cá, de cá pra lá, agoniada, acendendo um cigarro no outro, roendo as unhas. Nem percebeu que a sala havia escurecido, que a pequena filha já cansara de chamar, que o bar da sala estava vazio. Não podia contar com ninguém. Pierre demorou dois dias para voltar de sua viagem. Foram dois dias de pura agonia e insônia. Os federais não voltaram nesses dias, mas, a cada toque do telefone ou da campainha, era um suplício. Suor frio, unhas roídas, ressaca de cigarro com uísque. –Vou à noite pegar o carro e jogar, no Tietê, o que sobrou, jogo tudo, até a maleta. E se alguém me vir? E se boiar?! E se for da minha cabeça que Pierre tem algo a ver com isso? Não vai me perdoar. Quantos “ses”…, quero minha mãe! 

O marido voltou com a cara de sempre, a tranquilidade irritante. Mária vomitou as palavras contando sobre a visita da polícia num fôlego só, sem vírgula. Procurava no marido alguma reação. Percebeu um ligeiríssimo levantar da sobrancelha direita, só. “﹘Falaram o quê? Deixaram um cartão? Me passe. Não se preocupe, nada a temer. Nunca fui sócio dele. Deixa comigo, pode dormir em paz.”

Silêncio novamente. A malinha continuava quieta em cima do armário embrulhada num lençol. Aguardava o próximo capítulo. 

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” Pegue seu passaporte e veja se está em dia. Temos que ir semana que vem para Madri!” 

Máira nem tinha aberto os olhos ainda quando recebeu essa notícia estapafúrdia, Como? Quando? Madri, na Espanha?! Uau! Sempre quis ir à Europa! O que vamos fazer em Madri? Quanto tempo e, depois, vamos pra aonde? Que maravilha! Nem programamos… e Ana, como vai ser, com quem vai ficar? Com os cabelos caídos no rosto, a camisola amarrotada ainda quente fazia mil perguntas. Saiu dando pulinhos de alegria, nem passava por sua cabeça ir à Europa tão cedo. 

No dia da viagem, ao fazer a mala recebeu a notícia que era só uma mala de mão. Mais espanto, mais perguntas com respostas vagas. Mas a ansiedade era tanta que, para ir à Europa, até sem roupa! 

Viu Pierre pegar a bendita maleta no armário, sem banquinho, e perguntar friamente; “Quanto você pegou? A diferença vou ter que pagar a ele. Mais espantada ainda ela perguntou :Por que, se é dinheiro roubado? “Uma questão de honra”, foi a resposta. Curto e rápido. Mária deu os ombros, “quem rouba de ladrão tem cem anos de perdão”! E eu vou para a Europa!

Ele, com uma mochila pendurada no ombro e, na outra mão, tranquilamente, a maleta 007! Ela, com uma mochilona de couro também pendurada nos ombros parecendo mais pesada, sem nenhuma reclamação. Nada de fiscalização, direto para o avião! E lá foram eles para Madri, com a respiração suspensa. Nunca tinha andado de avião, só uma vez de monomotor! Tudo era um sonho! O avião grande, as poltronas, as aeromoças, o cheiro! Os anúncios disseram que só poderia fumar depois de o avião levantar voo. Que importa? Espero sem reclamar! Havia bebidas em garrafas minúsculas, ela achou tudo uma maravilha, até a comida! Chegaram ao amanhecer, indo direto para o Hotel Hilton. Se instalaram num apartamento que ela achou ser de cinema, que estava no sétimo céu de tudo tão lindo e com outros cheiros e perfumes. Era um quarto atapetado, cortinas, lençóis macios, coisinhas cheirosas no banheiro. Sim, era como estar nas nuvens! Estava feliz como há muito tempo não se sentia.

Às 11 horas, foram para o restaurante, sentaram-se e pediram vinho com presunto. Máira não cabia dentro de si. Não fazia perguntas, aguardava para ver aonde iriam depois, e depois! 

Entre um gole de vinho e uma fatia de presunto cru, que nem sabia que existia tão bom, viu entrar, sorrateiramente olhando para os lados, Juan. Estava envelhecido, mas com a mesma cara de malandro. Ela ia fazer festa ao vê-lo, levantar, abraçá-lo. Pierre deu-lhe um puxão no braço para sentar e ficar quieta. O presunto entalou em sua garganta. Ficou imóvel e muda. Retraída, começou a ter vontade de ir ao banheiro. O nervoso se manifestando. 

Discretamente, o marido passou por debaixo da mesa a maleta que escorregou direto para o colo de Juan e cochichou “Faltam dois mil e duzentos dólares. Vou dar um jeito de acertar com você depois”. 
Juan mudou a expressão, ficou vermelho e respirou com força. Sacudiu-se na cadeira. Trincou os dentes fazendo o maxilar crescer. Não gostou nada de faltarem aqueles dólares. Máira se encolheu e ia falando alguma coisa, desculpas por ter sido ela. Achou que os olhos dele iam sair das órbitas. Sentiu medo. Os intestinos se manifestaram em cólicas. Segurou a respiração e parecia que todos naquele restaurante olhavam para eles. Pierre apenas disse: “Fique calmo homem, não vou deixar de pagar!” Juan, com as mãos fechadas de quem prepara um soco respondeu entre dentes, com muita raiva “Só quero lhe lembrar que você está em minhas mãos, gostosão. Não se esqueça.” Levantou-se e saiu agitado com a maleta na mão. Quase chegando à saída do restaurante, se virou e disparou; ”Quer  saber? Se fudeu hombre, Carmencita vai voltar pra mim.”

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