“Me curar de mim” – Flaira Ferro

Assumir sentimentos nada nobres como arrogância, vaidade e inveja é um passo difícil para quase todo mundo. No meio artístico, essa atitude parece ser ainda mais rara. Ao expor suas fragilidades, a maioria dos artistas pensa que pode comprometer a admiração do público, sem o qual sua vida e carreira não fazem sentido.

Em setembro de 2016, a cantora, compositora, dançarina e pesquisadora pernambucana Flaira Ferro decidiu encarar esse lugar comum e se mostrar mais humana para a plateia que assistia às apresentações do TEDx realizado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A jovem artista compartilhou suas inquietações e dores de crescimento ao longo da carreira que começou bem cedo, aos seis anos de idade, e terminou sua fala interpretando, à capela, a música autoral “Me curar de mim”.

Os versos fortes de Flaira ganharam a rede e foram compartilhados por milhares de pessoas. Foi assim que eu cheguei até ela, que carinhosamente respondeu à primeira entrevista do Blog Sou Rigolô.

Stella: O que me mais me chamou atenção na apresentação no TEDx foi a sua maturidade. A coragem de encarar suas feras, reconhecer e aceitar sua sombra, que não é comum no ser humano e nas pessoas mais novas. A que você atribui sua força e por que acha que muita gente passa pela vida sem conseguir olhar seu lado mais escuro? Medo? Orgulho? Preguiça de iniciar uma busca de si mesmo?

Flaira: Muita gente vive no botão automático de quem nasce, cresce, reproduz e morre. Acredito que parte dessa alienação tem a ver com nosso sistema educacional e os modelos de família e valores que atravessam gerações na nossa história. Não há incentivo para o despertar de consciências questionadoras, que busquem refletir seus papéis no mundo com honestidade. Quando olho pros problemas sociais e existenciais da nossa época percebo que as indústrias bélica e farmacêutica crescem a todo vapor. E isso parece dizer muito sobre as escolhas que a humanidade foi fazendo...

É comum me perguntarem sobre essa tal força interior, percebo que é frequente a necessidade de encontrar respostas para amenizar as angústias da lida. Eu tento sempre desmistificar esses superpoderes e trazer pra realidade todas as idealizações em torno dos super-heróis. Penso que assim como aprendemos a andar, falar, correr, ler e escrever, força e coragem são coisas que se constroem ao longo da vida. São habilidades internas que precisam ser desenvolvidas através da escuta e da observação das próprias fragilidades. E isso é um processo de aprendizado que demora, é muito pessoal e pode ser bastante doloroso. Nem todo mundo tem paciência, tempo ou mesmo condições de se dedicar ao autoconhecimento. Mas tudo começa na observação, na escuta atenta às próprias limitações. Elas são material rico para iniciar mudanças.

Stella: Me curar de mim” é o reconhecimento de nossa pequeneza e de nossa humildade. Como chegou a esse ponto, a esse reconhecimento sobre si, quais os caminhos que lhe ajudaram? Vimos que um deles foi a terapia. Você ainda faz? (se souber dizer qual linha de terapia, é interessante compartilharmos).

Flaira: Eu não quero levar uma vida medíocre. Medíocre no sentido de ser morna, sem vitalidade, sem desenvolver a potência do fogo que há em mim e que habita em todos os seres. `Me curar de mim` nasceu como oração de um desejo de crescimento. Se você quer que sua planta cresça, vai precisar mudar o tamanho do vaso. Se você quer limpar sua casa vai precisar enxergar a sujeira, e pra enxergar o que está sujo vai ter de acender a luz. A luz mais bonita pra mim é a da humildade. E foi com essa luz que tentei me conectar quando escrevi a canção. E esse continua sendo um exercício constante…vez ou outra me pego nas armadilhas de meu ego e preciso voltar pro início, pro estado de observação e calma. Sobre os caminhos para essa percepção, acredito que o contato com a dança desde pequena me ajudou a observar meu corpo, meus estados de ânimo e de respiração. A dança contemporânea em especial foi e é bem importante para me ajudar a lidar com os mistérios da existência. A dança tem coisas que a palavra e a razão não alcançam, e as vezes ela é o único caminho que me orienta ao coração. Além da dança fiz terapia por quase três anos, numa linha baseada na bioenergética.  As sessões eram bem variadas e meu terapeuta era muito preparado e sensível. Conversas, desenhos, exercícios corporais, meditações, tudo era ferramenta para ativar consciências sobre determinado assunto.

Stella: Você escreveu: “O ser humano é esquisito/ armadilha de si mesmo/Fala de amor bonito/e aponta o erro alheio/ Vim ao mundo em um só corpo/ esse de um metro e sessenta/ devo a ele estar atenta/ não posso mudar o outro”. O que te ajuda a estar atenta e como você exercita o amor e a generosidade para com o outro, que pensa, age, é diferente de você?

Flaira: Eu procuro sempre criar espaços no meu dia a dia para fazer coisas que acalmem minha mente. E não tem uma fórmula exata pra isso. Tem dias que eu sinto vontade de desenhar, tem dias que preciso correr, ou cantar, meditar, cozinhar, depende. Nos últimos tempos tenho feito bastante yoga e meditação, respirando e emitindo sons a cada expiração. Vou inventando ou adaptando exercícios para me manter concentrada numa coisa sem esforço, sempre tentando me conectar com estados de agradecimento. Isso me ajuda a ficar bem comigo e consequentemente fico mais paciente e mais atenta em relação ao outro.

Stella: É impossível saber o que poderia ter acontecido se você não tivesse passado pelos revezes de se machucar e ficar sem dançar por até um ano e, depois, se mudar para uma metrópole e lidar com estranhezas como o anonimato em meio à multidão. Os desafios, a dor e a solidão são bons professores, quando prestamos atenção à aula? Quais outros bons professores existem nessa escola, na sua opinião?

Flaira: A dor e a solidão são sempre ótimas oportunidades para o início de transformações. Elas nos deixam mais humildes. No entanto, sentir sempre os revezes na pele pode ser também muito traumático e ter efeitos contrários ao da abertura pro novo. Então tento sempre viver atenta para a ideia de observar meu entorno primeiro e tentar identificar possíveis armadilhas da minha mente.

Nem sempre precisamos sentir dor para aprender algo. Tem um provérbio que diz que `inteligente é aquele que aprende com o próprio erro e sábio é aquele que aprende com o erro do outro`. Essa sabedoria me interessa muito, observar o entorno e minha vida inserida ali para ter escolhas cada vez mais conscientes e conectadas com meu coração.

Stella: Dá pra perceber que você é uma pessoa espiritualizada… Tem predileção por alguma linha de estudo, prática/ritual?

Flaira: Sou ecumênica e gosto de transitar por muitas formas de conexão com o divino. Observar a vida é espantoso: estrelas, sais minerais, algas marinhas, DNA. Tudo é tão sagrado diante da gente…A arte é o caminho que me acompanha a mais tempo. Não me dou bem com verdades únicas e definitivas. Elas geram fanatismos, guerras e discórdias entre os homens. Frequento igrejas, templos budistas, terreiros e aeroportos. Sim, aeroportos são bons lugares para observar as pessoas em seus estados sinceros de alegria ou tristeza. Tenho acompanhado as ideias de algumas pessoas atuantes da nossa época como: Sri Prem Baba, Monja Coen, Clarissa Pinkola, Viviane Mosé, Padre Fábio de Melo, Pastor Éd Renne Kivitz, Nise da Siveira e as redes sociais da NASA com fotos maravilhosas do universo. Gosto também de plantas e alimentos, de dançar e cantar para deus, direcionar minha vida para algo maior que eu, algo que transcenda meus entendimentos. Enfim, vivo brincando de inventar joguinhos que me tornem mais paciente. Paciência é luz.

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