Carta ao Carnaval

Um dia, depois de lutar até quase morrer, parei de negar que tinha realmente problema com álcool. Acreditei que o que eu tinha era uma doença, um transtorno. Esse dia foi um alívio pra mim. Fazia de quase tudo que as redes sociais me orientavam. E como orientam! Mil vozes prometendo ser feliz, dividido em 10 parcelas com desconto. E morria na praia.

Foi na praia, senhor Carnaval, que acordei com o sol e sal nos olhos, calor insuportável, areia na boca acariciada pela língua de um cachorro. Ele mostrou que metade de mim estava faltando; minha minúscula roupa com minha minúscula restante dignidade. Eu tinha prometido não beber álcool, já sabia que não podia. Eu sabia que podia tudo, menos beber. Tem monte de gente que pode, eu não.

Lembra senhor Carnaval, que no Réveillon tinha feito vários propósitos, como ser importante, me dar mais valor, me cuidar em todos os níveis?! Frequentar meditações, “inspire e expire, sorria, não pire”, tomar chazinho, virar zen?

Num deslize de milésimo de segundos, numa provocação, num teste, me achando superior a todos e a tudo que tinham me dito e ensinado, pelas pessoas que já tinham passado por vários desafios, fui em frente. Me misturei com corpos suados, fui entrando no ritmo de músicas alucinantes, saí de mim, dos propósitos, das promessas, bebi cerveja quente, bebi mais nem sei o quê, chupei balinha, chupei línguas, fumei, pulei, dancei, não parei. Beijei bocas com dentes, sem dentes, com batom e sem batom, apertei peitos volumosos, mirrados, agarrei pintos, fiz xixi por aí. Afinal… era Carnaval!

Foi quando acordei na praia e percebi que estava viva, numa praia imunda com o vira-lata esquálido me lambendo.

Senhor Carnaval, hoje seus dias mudaram muito, não são mais aqueles dias de farra que mamãe contava e lembrava com enorme alegria. Os anos de rápida sensação com a Rodoro, a lança-perfume que ensurdecia por segundos, que eram as marchinhas que levavam a um outro estado alegre, careta? Quando havia emoção nos beijos e nas mãos bobas, e que o maior trabalho era tirar a fantasia, limpar a purpurina e confetes grudados no corpo… E sempre havia um amor novo passageiro, mais ligeiro que os dias do senhor, senhor Carnaval.

Foi bom ter acordado na praia. Demorei, mas percebi que estava tendo outra oportunidade, de juntar meus cacos cobertos de areia, de recomeçar, de não me açoitar. Entender que era uma outra chance de saber que eu podia tudo nesta vida, menos arriscar o que podia me derrubar. Aceitar. Ter mais gratidão e misericórdia por mim.

Me lavei no mar. Renasci.

Obrigada, senhor Carnaval!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *