Poeira de estrelas – Parte 1

Começou cedo sua vivência com a morte. Era ainda menina; a menina Elisa como era chamada.  Antes, era só medo. Mas não bem da morte, mas o que poderia acontecer depois dela. Quem lhe fez sentir tanto medo foram as freiras do colégio e o padre nas missas.  Era medo de tirar o sono e trançar as franjas da manta até  dormir. E depois, e depois, era sua eterna pergunta angustiada.

Aos sete anos fez Primeira Comunhão, com um vestido branco de organza e seda, luvas iguais, mantilha rendada, toda linda! Levou para a primeira hóstia o pânico que sentia se seus pais morressem. Achava inclusive que, se seus dentes esbarrassem na hóstia, ela seria uma pecadora também. Tentava, quase suando, a deixar derreter na boca até sumir.  Foi assim que aprendeu. Não podia tomar banho com seus irmãos, não podia falar de como nasciam os nenês (imagina fazê-los!), tinha que seguir os Dez Mandamentos à risca. Nunca entendeu o sexto.

Nas aulas de religião lhe ensinaram que existia céu, purgatório, limbo e inferno. Quem morresse em pecado mortal, iria para o inferno para sempre. Para sempre é o que a deixava em pânico, já que seus pais deviam viver em pecado mortal, porque não “guardavam domingos e festas” e só iam à missa quando era de sétimo dia de alguém conhecido. À noite suplicava, ao final de outras orações: “Fazei com que papai e mamãe não morram. Que não me abandonem e não me desamparem”. Não só por terem que ir para o inferno, mas por ela ficar sem um deles, ou os dois. Sua fantasia do inferno era arrepiante.

Numa manhã de julho de céu azul, límpido, frio seco e cortante, o pai teve um enfarte aos 40 anos e morreu na cama na frente da menina com 13 anos em plena batalha com toda aquela história de inferno. Foram tempos de luto, horror, dúvidas e busca de respostas. Ouvia de algumas senhoras “pobrezinha, órfã”.

Entendeu mais tarde porque o avô se internou em sua biblioteca de mais de mil livros secretos sobre as ciências ocultas, filosofias e religiões diversas. Ele tentou não enlouquecer e segurar a avó da menina através da pesquisa de si mesmo, procurando se agarrar em alguma coisa que lhe desse sentido para a vida e para a morte. Seu filho foi o segundo a morrer. Já tinha perdido uma filha com 25 anos. “Pobre vovô”.

Ela ficava durante muito tempo sentada no chão dessa biblioteca, forrada de tapetes orientais muito antigos, olhando gravuras dos tais livros secretos, manuseando-os com muito cuidado, não deixando amassar as folhas de seda que cobriam as gravuras dos livros antigos. Sentia a maciez da seda contrastando com o áspero das páginas amareladas. Tocava-as com cuidado e cheirava seu cheiro. Encantava-se com as contracapas feitas de papel brilhante pintado de várias cores, combinando com o couro das lombadas escritas em ouro. Mundo mágico, mesmo sem entender uma palavra! Era um prazer inexplicável!

E a roda da vida continuou girando… A menina virou moça, o avô morreu. Morreu em casa e ela deitou-se na cama ao lado dele, olhando-o com respeito. Viu que seus pés estavam amarrados com gaze, certamente para não abrirem, e o queixo também. Adormeceu ao lado dele até a hora de levarem o corpo embora do quarto. Foi acordada por sua mãe espantada com essa atitude. Pegou a bacia com tartaruguinhas verdes debaixo da cama e as levou para casa. Ele dizia que era para não ter crises de asma.  Sabia que ele, apesar de não frequentar nenhuma igreja, não iria para o inferno, tinha certeza.

A moça casou, virou mulher e mais questões saltitavam em sua mente, daqui para lá, de lá para cá, pra cima, pra baixo, pra frente, pra trás. Pecado, culpa, céu, inferno, amor, ódio, raiva, ciúme, inveja, profano, sagrado. Tinha uma monkey mind incansável, atordoante. Passou a usar vários escapes para esse estado, que nunca deram certo. Um dia teve uma hemorragia, estava grávida de quase três meses, e levaram-na para o hospital. Na sala de cirurgia “morreu”, parou. Entrou em curto-circuito, pane total.  “Coitada, tão moça…” disseram algumas pessoas na sala de cirurgia.

Só que ela se encontrou inesperadamente em um espaço iluminado de azul e dourado! Sem correrias ou queda em túneis escuros, se sentindo como embaixo da cena sem conseguir explicar. Como se fossem retiradas camadas e mais camadas de véus que lhe impediam de vivenciar a verdade da vida. E ali, delicadamente, lhe foi apresentado um filme, memórias de milhões de anos, todo o inconsciente, todos os mistérios desvendados, a paz e alegria perfeitas! Ali estava Deus, um único Deus do Universo, a Inteligência Suprema, o Grande Espírito deixando saber que ela complicava tudo, usava o livre arbítrio de maneira torta estragando a todos e à natureza.

Entendeu que tudo o que pensava, falava e fazia durante a vida deixava uma impressão na mente, e a soma total de todas essas impressões influenciava os acontecimentos em sua vida e na Terra. Que Deus não tinha nada a ver com o que de ruim e doloroso ocorria e como queriam todos. Sempre a culpa era de Deus! Como se ela não fosse responsável.

Estava em êxtase total, sentiu que estava no paraíso prometido e, se isso que era a morte, que bom estar morta! Entendeu que a morte não existe! Se não era a morte era uma expansão da consciência das maiores! Nenhum apego, nenhuma dor, apenas puro amor e poesia. Um amor desconhecido. Era um estado de espírito, de alma, de pura luz! Não queria sair dessa condição.

Voltou à Terra com o joelho de uma médica em cima de seu peito, um tranco, uma massagem. Várias vezes. Olhou-a furiosa, faiscando e questionando o que ela havia feito. Como ousava tirá-la daquele lugar… Foi ficando emburrada e perguntou se tinham tomado nota de tudo que ela havia dito durante esse tempo. Responderam que ela não falara nada porque estava totalmente “parada” e sua gravidez havia sido interrompida pela quarta vez. Em vez de lágrimas, silêncio, perplexidade, não tinha mais medo da morte. Conheceu Deus!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *